domingo, 8 de setembro de 2013

O som do Fogo


 

O som do Fogo

Três pessoas com um futuro transformado pela música

 

 

Lya Gallavote

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1

“Às vezes eu falo com a vida
Às vezes é ela quem diz
Qual a paz que eu não quero
Conservar
Para tentar ser feliz”

A minha alma (A paz que eu quero) – O RAPPA

 

 

‒ Estamos arruinados.

Eu me mexi na poltrona, como se tivesse levado um choque.

Raul e Camila ficaram surpresos. Na verdade, surpreso é pouco. Raul, meu irmão de 20 anos, ficou pasmo, depois um pouco desconcentrado, e então fechou a cara. Minha mãe, enroscada ao lado de Camila, no sofá, olhou para meu pai, furiosa, da mesma forma quando me mandava arrumar meu quarto antes que ela jogasse tudo no lixo.

Não era exatamente o que eu esperava, mas eu imaginava que isso fosse acontecer.

‒ O que vamos fazer daqui para frente? ‒ perguntei ao meu pai, enquanto analisava sua expressão. Era uma mistura de pavor com decepção.

‒ Ainda não sei. Estou pesquisando na internet, tentando descobrir uma solução. Mas o que eu realmente queria dizer é que precisamos ter calma.

Estávamos na sala de estar. O lugar da casa mais visitado quando tínhamos um problema, como aquele. Meu pai ao lado da janela de vidro, a face vermelha feito um pimentão, olhava para nós desesperado, em busca de uma solução para nosso problema. Aliás, não era um mísero problema. Precisávamos de um milagre, afinal, era do estúdio que vinha todo o nosso recurso. Eu usava minha calça jeans, minha baby-look branca e meu all star rosa, com cadarço roxo. Pensando melhor, acho que deveria estar usando roupa preta para expor meu luto.

‒ Deixe-me ver se entendi direito. ‒ Camila, minha irmã mais nova, inclinou-se para frente. ‒ O senhor nem vai tentar recuperar o prejuízo?

‒ Não vejo outra solução. Não tínhamos seguro. Estamos arruinados e não temos como fazer um novo financiamento. Já vendi o carro... Poderíamos alugar outro estúdio, se tivéssemos dinheiro, mas, infelizmente, toda nossa pouca reserva é para emergências da casa. Podemos até tentar um novo empréstimo, mas eu duvido que o banco irá liberar, já que ainda estamos pagando o último que fizemos. Mandei meu currículo para a Selene e estou aguardando respostas.

‒ Com 56 anos? ‒ indagou Camila. ‒ Pai, onde o senhor está com a cabeça? Acha que vai ser fácil trabalhar em uma indústria de meias?

Camila falou de um jeito como se papai fosse um inválido.

‒ Claro que eu sei que não será nada fácil. Como eu disse, preciso da calma e paciência de vocês. A proposta é conseguirmos um recurso para que Raul e Laura não precisem largar a Faculdade. Primeiro cada um de nós terá que procurar um emprego, para que depois com sorte, possamos reabrir o estúdio, após reformá-lo é claro.

‒ Trabalhar? Eu vou ter que trabalhar fora do estúdio? ‒ Camila parecia inconsolável.

‒ Isso...? ‒ ele piscou. ‒ Eu pensei, quem sabe, usar o que vocês aprenderam comigo... Ou até mesmo, trabalhar aqui em casa, pela internet. Sei de pessoas que ganham dinheiro sem sair de casa.

‒ Eu só sei fazer panfletos ‒ reclamou Camila.

‒ E eu, só sei fazer música ‒ murmurou Raul.

‒ Bom, é... pensei que poderiam fazer outras coisas ‒ disse meu pai, alisando os cabelos grisalhos para trás.

‒ E você, claro, iria fazer outra coisa também. Pelo amor de Deus, Luiz! O que você sabe fazer, além de música? ‒ concluiu minha mãe.

‒ Olha, Tânia! Não é nada impossível. Estou falando que precisamos manter nossas despesas em ordem e nossos filhos na Faculdade, para começar. Nesse primeiro mês eu consegui manter a casa, mas não quero esperar acabar nosso dinheiro. Sempre trabalhamos juntos e precisamos continuar unidos. Não será uma fase ruim que nos derrotará.

Não acrescentei que me deu calafrios só de pensar que eu não tinha noção nenhuma em fazer outra coisa, a não ser música.  E pensar em largar a Faculdade de Música, para mim, era o mesmo que me tirar o chão.

‒ Acho que vamos conseguir ‒ finalmente consegui dizer. ‒ Não quero largar a Faculdade. Tentaremos qualquer coisa para ajudá-lo, pai.

Minha voz cortou o silêncio. As palavras ficaram ali, no ar, esmorecendo na sala por muito tempo após o som ter sumido.

‒ Não será tão ruim assim. ‒ Tentei sorrir, apesar do meu estado de choque em saber que estávamos arruinados. Tudo por causa do fogo. O mesmo fogo que poderia estar queimando a minha face naquele momento com toda a minha família me encarando. Por um instante não sei de onde tirei forças para dizer aquelas palavras, mas eu disse. ‒ Não vamos nos destruir como aconteceu com o estúdio. Nós vamos conseguir. Eu sei que vamos.

 

Ð

 

Sábado sempre me animava, principalmente os produtivos como aquele em que gravávamos várias músicas e tudo fluía muito bem. Gostava de chegar cedo ao estúdio, ligar a mesa de som para testar as gravações ajustando os arranjos conforme precisavam e conversar com meu irmão Raul sobre a Faculdade, enquanto trabalhávamos as músicas.

Gostava do ambiente refrescado pelo ar condicionado, das pequenas rajadas quentes quando a porta se abria e fechava, do som dos instrumentos sendo modificados com a ajuda da aparelhagem e dos computadores, e quando a música finalizava, do som maravilhoso que produzíamos. Era um estúdio de primeira qualidade, as paredes revestidas de madeira na sala de gravação, as mesas de som modernas e eficientes e os microfones eram sempre os mesmos desde que eu comecei a trabalhar lá, exceto quando o cantor exigia um Newmann ou um Shure, e meu pai logo ficava nervoso com o desprezo com os que estavam disponíveis.

Mas, acima de tudo, eu gostava de ouvir os cantores gravarem suas músicas. Gostava dos sertanejos sorridentes que calçavam botinas de couro de cobra, trazendo violas brilhosas e bem cuidadas e chapéus de couro de vaca. Gostava dos Pop Rock, que sempre vestiam roupas caras e modernas, mas que não deixavam de lado a simpatia e o talento. Me divertia com os cantores de Forró, com roupas exclusivas e bem coloridas, alegrando o estúdio com melodias originais. Adorava os cantores de Reagge, usando dreads de lã coloridos e roupas folgadas, sempre tranquilos, no estilo “Paz e Amor”. 

Gostava dos bolivianos, que gravavam melodias folclóricas, como se tivessem em seu próprio país. Dos adolescentes que sonhavam em ser Pop Stars, mas que qualquer um poderia dizer a eles para desistirem, enquanto não engrossassem a voz. Nem os cantores chatos, como a mulher loira, que gravou um CD de música erudita e reclamou do preço da gravação, me incomodava.

Testemunhei vários talentos naquele estúdio; gente que merecia uma chance por ser muito bom; o alívio culpado dos desafinados conscientes e o prazer secreto dos que ouviam o som da própria voz com um efeito perfeito. Todo tipo de cantor frequentava aquele estúdio e a maioria pedia minha opinião ao final da primeira música, fazendo piadas ou comentários diante do vidro que separava a sala de gravação da sala técnica onde eu ficava. Papai sempre dizia que não devíamos jamais dizer que o cantor é ruim, ou que não conseguiria cantar, pois nosso estúdio era capaz de fazer milagres (quase sempre); até mesmo com aquelas vozes desafinadas.

Eu gostava do meu trabalho. Desde os doze anos, ajudava meu pai em suas produções e ele gostava de minha presença ali. Dizia que eu animava o estúdio, com meu otimismo. Para mim, era como se eu tivesse uma chance de realizar o sonho das pessoas que queriam conquistar seu espaço no mercado musical.

Até que naquela noite de sábado, quando ainda jantávamos, o telefone tocou e o chefe dos bombeiros avisou meu pai que o estúdio estava pegando fogo. Claro que ele só fez isso, pois o conhecia desde o colégio. Uma notícia tão triste como esta, só era possível deixar meu pai calmo daquela maneira, se fosse recebida por um profissional e amigo.

Meu pai desligou o telefone atônico. Sentou-se na cadeira, enquanto minha mãe aguardava uma palavra dele.

‒ Ai, Luiz. Não me diga que outro cliente desistiu de gravar e teremos que devolver o dinheiro. Estamos com dívidas até o pescoço.

Meu pai não respondeu. Apenas fitou o vinho na taça e antes de responder, limpou a boca com o guardanapo. Eu nunca o vira tão apático daquela maneira. Supus em um lampejo que alguém tivesse reclamado de um trabalho nosso, algum erro de gravação, ou um acorde perdido no meio da música. Então, ele tomou um generoso gole de vinho. Colocou a taça na mesa.

‒ Não tenho boas notícias.

Camila e Raul pararam os talheres no ar e fixaram seus olhos em meu pai.

‒ Diga logo, pelo amor de Deus ‒ exigia minha mãe.

‒ O estúdio pegou fogo. Queimou tudo o que tínhamos construído em anos.

Não sei por quanto tempo fiquei lá sentada, de boca aberta, ouvindo as lamentações de minha mãe e de meus irmãos, tentando entender o que acontecera, como pegou fogo e se poderíamos avaliar o estrago pessoalmente.

Mas, meu pai nos disse que nem adiantava irmos lá, pois os bombeiros tinham isolado o quarteirão inteiro e interditado a entrada do estúdio. Era melhor aguardarmos até eles terminarem de apagar o fogo e, então, nos ligariam. Ninguém comeu mais nada.

‒ Sinto muito dizer, mas eu não queria preocupá-los com isso. Eu sei o quanto dependemos desse estúdio para viver. Espero resolver esse assunto da melhor maneira possível, sem mudar nosso modo de vida.

 

Ð

 

‒ Noventa dias! ‒ estourou papai, quando mamãe colocou o telefone no gancho e contou a novidade para nós. ‒ Bem generoso esse gerente, já que temos contas a vencer nos próximos quinze dias.

‒ Ouça, Luiz ‒ minha mãe tinha o tom de voz calmo. ‒ Não se desespere. Não é um período tão longo assim.

‒ O que podemos fazer? Se pelo menos eu tivesse feito o seguro, não estaríamos nesse sufoco.

‒ Bom... não adianta ficarmos lamentando o que fizemos ou deixamos de fazer. Simplesmente, temos que arranjar um emprego. Nossos filhos estão grandes e são inteligentes, garanto que vamos conseguir manter a casa e a faculdade dos meninos. E você vai conseguir um emprego também.

Meu pai balançou a cabeça. Notei seu desconforto assim que passou os olhos por todos nós antes de falar.

‒ Bem... o departamento de Recursos Humanos da fábrica já me mandou a resposta e eu não fui aprovado – a voz de meu pai era fraca. – Eu sei fazer música, mas o único estúdio que conheço, além do nosso, é concorrente. Duvido que Armando Siqueira iria me empregar.

Minha mãe suspirou como se fosse explodir. Mas, ela se controlou antes de falar.

‒ Se cada um de nós fizer um pouquinho, tenho certeza que vamos passar tranquilos por essa fase. Até eu estou pensando em vender sanduiche natural. Já peguei algumas receitas na internet.

Papai não disse nada, somente levantou a sobrancelha, antes de voltar a ler o jornal. Eu entendia completamente toda a preocupação dele. Nós dependíamos do estúdio para tudo. Nossa renda vinha do trabalho que produzíamos no estúdio. Tínhamos planos para divulgar o estúdio na internet e participar do Pop Rock Brasil no Rio de Janeiro no próximo mês. Levaríamos a melhor banda da região para a abertura do show. Meu pai se beneficiaria com a produção e a vendagem dos CDs. Mas agora, tudo isso, foi destruído pelo fogo. Além dos computadores, toda a aparelhagem foi destruída, impossibilitando a produção de qualquer música. E pensar que meu pai estava prestes a fechar o contrato.

Seria muito fácil resolver esse problema. Bastava apenas alugarmos um estúdio – poderia ser até em outra cidade, já que o concorrente jamais cederia o espaço deles para trabalharmos, nem por todo dinheiro do mundo ‒ chamaríamos os músicos para os testes e em poucos dias, gravaríamos o CD. Certo?

Claro que não! Isso seria perfeito, se tivéssemos dinheiro para investir. O pouco que nos resta, papai disse que é para as eventualidades. E o empréstimo está longe de ser aprovado. Só me restava animá-lo:

‒ Vai dar tudo certo, pai. Amanhã vou dar uma volta na cidade e ver o que posso fazer. Ainda temos quinze dias para terminar o mês. As contas estão pagas e podemos comprar a comida com o cartão de crédito.

Eu me sentei enquanto observava meus pais discutirem qual trabalho poderíamos fazer com nossas poucas qualificações. Aliás, erámos movidos pela música, agora estávamos perdidos. Pela primeira vez desde a notícia sobre o incêndio, há um mês, tive vontade de chorar.  Será que eu vou conseguir fazer outra coisa?

 

Capítulo 2

“Vamos sair
Mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão
Procurando emprego”

Teatro dos Vampiros – LEGIÃO URBANA

 

Hoje faz um mês, exatamente, que o estúdio pegou fogo. Resolvi não ir à Faculdade nesses últimos dias, mesmo porque não tinha cabeça nenhuma para bagunça, já que as aulas praticamente encerraram e os alunos apenas conferiam as notas e curtiam a balada no bar da esquina. Pelas minhas notas nas avaliações, já sei que fechei, e não estou com cabeça nenhuma para diversão. Assim, decidi me concentrar no emprego.

 Procurar um emprego no início do dia não fazia parte dos meus planos para uma segunda feira fria, mas não podia mais adiar. Minha primeira tentativa foi em uma loja de sapatos, com um anuncio na porta. Fiz algumas perguntas para o gerente que demonstrou uma expressão vazia e desinteressada por uma estudante de Música, pedindo para entrar depois do almoço por causa da Faculdade e exigindo os sábados livre para poder estudar. Claro que não deu certo.

Segui para a sorveteria, tentando a mesma proposta para o dono que me olhava sob os óculos pendurados no nariz. Sua expressão apalermada, logo me desanimou e em menos de dois minutos eu tive um não como resposta.

Passei pelo mercado da praça central e pela banca de jornal. O horário novamente foi empecilho, já que os dois estabelecimentos precisavam de um empregado com horários disponíveis e não de alguém que quisesse fazer o papel do patrão.

Agora, eu estava sentada em uma lanchonete, esperando a dona do estabelecimento, enquanto minha amiga Thainá tentava me animar, depois de ouvir todo o desastre que aconteceu com minha família nesse último mês. Certo que Thainá sempre esteve a par de minhas lamentações, desde o incêndio.

‒ Não se preocupe, Laura. Aposto como as coisas vão se ajustar o mais rápido que imagina. ‒ Thainá recostou-se na cadeira. ‒ Já pensou em conversar com o dono do estúdio Z? Fiquei sabendo que eles estão precisando de uma ajudante.

‒ E você acha que ele vai me empregar? Meu pai é seu maior concorrente e não são nem um pouco amigos.

‒ Talvez você devesse tentar. Quem cuida das contratações é a filha dele, Sheila. Duvido que ela não aceitaria te dar uma oportunidade, ainda mais quando souber quem você é. Até por que seria interessante para eles, aprender técnicas novas.

Ergui uma sobrancelha.

‒ Está me dizendo que ele aproveitaria da situação toda para tirar proveito dos meus dotes musicais?

‒ Não vejo porque não. Aliás, seria ótimo você continuar fazendo o que gosta por um bom salário.

‒ Por favor, Thainá. Não diga que você sugeriu que eu trabalhasse para o concorrente de meu pai. Se ele descobrir isso ficará arrasado.

‒ A essa altura do campeonato, duvido muito que o Sr. Luiz recusaria qualquer proposta. Mesmo porque, seria uma troca. Você seus dotes musicais por um ótimo salário. Que tal?

Olhei bem para ela.

Thainá encolheu os ombros.

Ficamos em silêncio por um instante. Fitei a porta da lanchonete, por onde entraram três adolescentes sorridentes e me perguntei quando teria aquela paz de espírito novamente.

‒ Não sei se saberei lidar com Armando Siqueira. Ele é um poço de arrogância e duvido que melhorará com a presença da filha de seu principal concorrente.

‒ Ah! Então você está pensando na possibilidade de trabalhar no estúdio Z?

‒ Não sei fazer outra coisa, a não ser música.

‒ Nem servir café?

‒ Engraçadinha.

‒ Não estou fazendo graça. Se não quiserem te contratar para trabalhar com a produção musical, talvez eles ofereçam um serviço de copeira.

‒ Então quer que eu faça cafezinho para os músicos? Nesse caso, acho melhor eu trabalhar aqui na lanchonete.

‒ Você já conversou com a dona?

‒ Estou esperando por ela.

Thainá olhou para o balcão e alisou os cabelos ruivos.

‒ Não acho que será uma boa ‒ sussurrou ela.

‒ Por que?

‒ Acho que não há muita coisa a se fazer. Não tem espaço suficiente para que sobre um emprego para você aqui. Já vi dois funcionários, e pelo tamanho do estabelecimento não acredito que ela contratará mais um.

‒ Bom, então tenho que tentar o estúdio Z. Preciso chegar em casa com uma notícia otimista. Mostrar ao meu pai que estou tentando de tudo. Até mesmo, me submeter ao seu concorrente.

Como explicar para minha amiga o quanto eu precisava de um emprego? Nunca pensei que eu fosse sentir tanta falta do estúdio como se sente do ar quando estamos debaixo da água. Não imaginei que os medos básicos como a falta do dinheiro e um futuro instável fosse mexer tanto comigo. O estúdio destruído me fez sentir inadequada e inútil. Senti falta de minha família trabalhando unida, sem me importar com o stress de meu pai ou a cara feia de meus irmãos.

A voz de Thainá interrompeu meu devaneio.

‒ Eu posso ir com você ao estúdio Z se quiser.

Fixei meus olhos nos dela.

‒ Quer que eu te acompanhe, Laura?

Ela perguntou como se houvesse dúvida.

Mas nós duas sabíamos da resposta.

‒ Não, Thainá. Dessa vez tenho que resolver sozinha.

Suspirei e peguei minha bolsa, pronta para mudar o futuro.

 

Ð

 

Fiz uma curta viagem de ônibus me sentindo levemente enjoada. Nunca tive uma entrevista de trabalho. Comecei a trabalhar aos doze anos com meu pai e jamais imaginei que precisaria procurar emprego longe de minha família. Foi muito fácil, durante esses anos todos, participar de milhares de produções musicais. Desde a inauguração do estúdio, meu pai contou com toda a família. Eu o ajudava nos ajustes vocais e na finalização das músicas. Raul afinava os instrumentos e orientava os músicos com nos acordes. Camila sempre ficou com a divulgação do trabalho do estúdio na internet e na Região; produzia os banners dos músicos e cartões de visitas. E minha mãe produzia as capas dos CDs, já que adorava trabalhar com web designer.

Agora, olhando para trás, não consigo nem me lembrar de ter falado com meu pai sobre dinheiro. Ele me pagava por semana, e uma vez por ano me dava um pequeno aumento, geralmente de acordo com a inflação. Talvez se eu não tivesse gastado com roupas que nem precisava, ou com sapatos caros, e tivesse feito uma poupança, não precisava estar tão preocupada com um novo emprego.

Mas, afinal, como devo me comportar no estúdio Z? E se fizerem um teste prático, será que as mesas de som são iguais as que eu sei manusear? Thainá disse que poderiam me oferecer o emprego de secretária para servir cafezinho (estremeci só de pensar). As funções de copeira não estavam muito claras. Imaginei-me em frente ao fogão, e talvez cozinhando para os músicos. Não vai dar certo.

O estúdio Z ficava do outro lado da cidade, perto do Ginásio de esportes.  Andei por aquela rua milhares de vezes na vida sem nunca ter prestado atenção nela. Agora, ao passar pelo estacionamento do Ginásio e pelo campo de futebol, que estavam vazios naquele horário da segunda feira, notei que o estúdio Z era maior do que eu imaginava, decorado com pedra canjiquinha com duas janelas de vidro que iam do chão ao telhado. O tipo de comércio que a gente só vê nos bairros chiques de São Paulo, mas que por algum motivo, Armando Siqueira quis trazer para Cerquilho.

Desci do ônibus e percorri a longa calçada de pedra tentando não pensar que alguém me olhava da janela. Entrar em um local onde todos sabem que você é filha do maior concorrente, te deixa em grande desvantagem; isso faz me sentir literalmente inferior. Eu estava exatamente ponderando se prendia meu cabelo quando a recepcionista virou-se para mim no balcão e me fez alisar a alça da bolsa.

Uma garota um pouco mais velha que eu usava calça jeans, camiseta preta de manga longa com o nome do estúdio estampado e carregava uma pasta cheia de papéis. Talvez fosse a filha de Armando Siqueira. Ao passar por mim, deu um sorriso simpático.

‒ Você deve ser a cantora das duas horas...

‒ D...desculpe, mas não sou cantora. Eu vim para o cargo de ajudante ‒ sorri como sempre fazia quando queria ser simpática; mesmo com o nervosismo à flor da pele.

Minha mãe sempre me ensinou que a conquista vem pelo sorriso. Era hora de testar sua teoria.

‒ Certo. Qual seu nome?

‒ Laura Sales.

Ela colocou a pasta sobre o balcão tão rápido como se tivesse levado um susto, sem tirar seus olhos sobre mim, como se me avaliasse.

‒ Vou te dar uma ficha. Preencha todos os campos, enquanto eu termino de arquivar esses documentos. Meu nome é Sheila. ‒ Ela mudou de repente. Parecia exausta, como se já tivesse dito aquelas palavras milhões de vezes naquele dia.

Exatamente como eu havia imaginado, ela era a filha de Armando Siqueira. Peguei a prancheta com a ficha e me sentei no sofá para preencher meus dados.

Assim que terminei, voltei para o balcão. Sheila não estava lá. Só foi aparecer minutos depois como se tivesse informações sobre mim e quisesse ser minha amiga.

‒ Você veio porque viu o anúncio no jornal, certo?

Enquanto ela lia minha ficha, examinei disfarçadamente a sala. Pensei que o estúdio talvez devesse ser parecido com o do meu pai, tudo bem instalado e com aparelhagem de primeira qualidade, já que a recepção era muito sofisticada. Mas, era mais parecido com uma clínica dentária cara, imerso numa riqueza moderna. Eu estava longe demais para ver a aparelhagem. Enquanto ela lia minha ficha, eu estiquei meu corpo para tentar enxergar melhor diante do corredor que se estendia atrás dela.

‒ Então, Laura. Tem alguma experiência com música?

Virei-me para olhar para Sheila me perguntando se ela não havia me reconhecido ou estava disfarçando. Será que ela não leu o nome de meu pai e do estúdio que eu trabalhava na ficha?

‒ Tenho. Faço Faculdade de Música e fiz dez anos de piano e canto.

‒ Hum... Está com dezoito anos. Não acha que é muito jovem para ter tudo isso de experiência? Seis anos?

‒ Er... Trabalhava com meu pai. Luiz Sales ‒ disse esperando ser esculachada daquele estúdio. ‒ Tenho certeza que vou ser bastante útil para vocês aqui.

‒ Espere um minuto. Você é filha do dono do estúdio que pegou fogo?

A maneira como destacou as palavras, parecia sugerir algum nível de idiotice de minha parte.

‒ Sou. ‒ Ajeitei a bolsa no ombro pronta para sair.

‒ Então, você gostaria de trabalhar aqui?

‒ Sim.

‒ Acho que sei o que vou te dar para fazer.

Foi tão inesperado que pensei ter ouvido errado.

‒ O que você disse?

‒ Precisamos que comece o mais rápido possível. O pagamento será mensal, com participação nos lucros da empresa de acordo com a produção.

Fiquei um instante sem saber o que fazer.

‒ Não se importa de eu ser filha de Luiz...

‒ O horário é das quatorze às vinte horas, às vezes de sábado, mas só quando for algum trabalho de urgência e pagamos o dobro pelos extras. Vinte minutos de café, no meio do expediente.

‒ Vocês não precisam de alguém mais velho que eu?

‒ O estúdio está inovando sua aparelhagem e quanto mais jovem, melhor.

‒ Vou precisar usar uniforme?

‒ Não. Se quiser poderá usar a camiseta ‒ ela apontou os dois indicadores para sua estampa. ‒ Nada obrigatório.

‒ O que exatamente terei que fazer?

‒ Quando você começar, explicarei tudo. O trabalho vai exigir tanto dos seus dotes musicais quanto das habilidades profissionais que possa ter.

Bem que Thainá tinha razão. Eles queriam aprender algo novo comigo e só por isso estavam me dando aquela chance. Será que eu deveria aceitar ou não?

‒ Então, nos vemos amanhã?

‒ Amanhã? Você não vai me mostrar o estúdio primeiro?

‒ Estamos em um dia atarefado, cheio de gravações. Acho melhor fazermos isso depois.

Então, sorri para Sheila, percebendo que ela já esperava que eu saísse, pois a cantora das duas horas acabara de estacionar o seu carro na garagem do estúdio.

‒ Ok ‒ concordei, ajeitando a bolsa no ombro. ‒ Obrigada pela oportunidade. Chego às duas horas.

 

Ð

 

Mamãe estava diante do computador, pesquisando novas receitas de sanduíches naturais. Sentados no sofá estavam Raul, afinando o violão, Camila, escrevendo em seu diário e Papai folheando o jornal.

‒ Camila ‒ disse mamãe sem desviar os olhos da tela. ‒ Você prefere com milho ou sem milho?

‒ Não vai ficar muito caro? Acho melhor diminuir os ingredientes e baratear o lanche.

Papai dobrou o jornal e olhou para mim, assim que me sentei no sofá de frente para ele.

‒ Conseguiu alguma coisa, Laura?

O som estava ligado, então eu pude ouvir a voz do cantor de forró que gravara aquele CD poucos dias antes do fogo destruir tudo.

‒ Consegui uma grande oportunidade. Vou trabalhar no estúdio Z.

Papai me fitou, como se fosse me dar uma bronca, mas logo olhou para o chão fingindo não ter escutado.

‒ Espero que você tenha sido simpática. ‒ Mamãe sorriu para mim.

‒ Você chegou a conhecer o estúdio? ‒ Raul parou de tocar o violão. ‒ É tão bom quanto era o nosso?

‒ Vou conhecer amanhã.

‒ Acho estranho você trabalhar no estúdio de nosso maior concorrente ‒ criticou Camila.

‒ O único, Camila. Lembre-se que nós moramos em uma cidade pequena.

‒ Apesar disso, não vai ter que se preocupar com a disputa entre os dois estúdios, certo? Afinal, agora não tem mais concorrente ‒ insinuou meu pai.

‒ Luiz! ‒ exclamou minha mãe ríspida. ‒ Não seja duro com Laura.

‒ Eu apenas disse o que todo mundo está pensando. O estúdio Z, com Laura por perto, tem grande chance de expandir seu negócio. Só falta contratarem Raul e Camila. E até você, Tânia.

‒ Não diga isso, Luiz. Laura está fazendo o que você pediu. Arranjou um emprego. Aliás, estamos todos progredindo. Raul vai dar aulas de violão em casa e Camila vai me ajudar com a venda dos lanches.

Eu logo percebi que meu pai não sabia como lidar com a derrota. Até compreendi seus anseios, porém, não sabia o que dizer para deixá-lo mais tranquilo, afinal eu era o seu braço direito e agora estava disponível para o concorrente.

‒ Quer que eu não aceite o emprego, pai? Ainda dá tempo. Basta um telefonem...

‒ Imagina, Laura. Seu pai vai superar ‒ disse mamãe antes que papai pudesse abrir a boca.

Papai tomou um longo gole de vinho e deu de ombros.

‒ Sabe, eu estava pensando: você terá que ensinar todos os nossos segredos? Quer dizer, se você agora é funcionária do estúdio Z, deverá se dedicar para não te mandarem embora. Como vai fazer para agradá-los? ‒ perguntou papai, enquanto mamãe fechava o notebook.

‒ Não vou ensinar a eles tudo o que sei... É um emprego provisório. Tenho certeza que não vamos demorar muito para reabrirmos nosso estúdio.

Na verdade, não tinha nenhuma certeza quanto a isso, mas eu precisava animar meu pai, mesmo ainda estando um pouco chocada por conseguir um emprego tão rápido com a concorrência e ainda fazendo o que eu gosto e domino.

‒ Talvez queiram apenas que você ensine a eles o melhor que sabe fazer. O segredo do nosso sucesso. ‒ Afirmou Camila.

‒ Se fosse tanto sucesso assim, não estaríamos procurando emprego no concorrente ‒ disse Raul.

Desde o incêndio, meu irmão conservava um mau humor fora do comum.

Camila fez uma careta, enquanto fechava o diário com a caneta dentro dele.

‒ Acho que eu ficaria louca se Armando Siqueira gritasse comigo. Dizem que ele é um porre.

No ônibus, enquanto voltava para casa, esses mesmos pensamentos zuniam minha cabeça. O que eu iria fazer no estúdio Z? E se eu tivesse que servir cafezinho como Thainá havia dito? E quanto aos gritos de Armando Siqueira? Será que eu aguentaria? Eu ficaria apavorada? E se eu não conseguisse lidar com as mesas de som deles? Eu era famosa por ser calma e tentar concentrar as coisas da melhor maneira possível. Até mesmo quando meu pai estava a ponto de explodir, eu tentava da melhor forma apaziguar a situação. Quantas vezes Armando Siqueira gritaria comigo? E se eu não aguentasse seus gritos histéricos? Não gostava da ideia de ser humilhada por ele o tempo todo.

‒ É um ótimo salário, Camila. Melhor do que ter que largar a Faculdade, ou emprestar dinheiro com agiota e ter que vender a casa para pagar os juros.

Houve um murmúrio geral de concordância na sala.

‒ É ótimo que tenha conseguido um trabalho, querida ‒ disse meu pai. ‒ Estamos orgulhosos de você. E aposto quando colocar os pés naquele estúdio, aqueles pilantras não vão mais querer te largar. Você vai provar ao Armando porque erámos os melhores. Tenho certeza disso.

 

Capítulo 3

”Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar”

Não vou me adaptar – NANDO REIS

 

‒ Aqui é a sala de descanso. Temos um frigobar, micro-ondas e geladeira. Este é o quarto de hóspedes, caso seja necessário algum cantor de outra cidade ter que passar a noite e não quiser se hospedar em alguma pensão da cidade.

Sheila andava rápido pelo corredor, gesticulando de uma porta a outra, sem olhar para trás. O sapato estalando no piso de pedra. Parecia haver alguma expectativa de que eu fosse desistir.

‒ A sala de gravação fica aqui e a outra é a sala técnica. Acho que isso você já conhece. Armando vai lhe ensinar como funcionam as mesas de som. Mas... no momento ele não chegou. Está terminando uma produção em casa.

‒ Eu posso esperar ‒ falei.

Sheila pareceu não ouvir.

‒ Você pode preparar o seu suco ou beber um refrigerante na cozinha. Mantemos o armário abastecido. O banheiro é por aqui.

Ela abriu a porta e olhei para um espaço bem pequeno com uma pia e uma bacia.

Sheila virou-se para me olhar.

‒ É importante que não entre na sala técnica sem a presença do Sr. Armando. O último rapaz que trabalhou aqui, o Claudio, foi tentar terminar uma produção sozinho... apagou toda a gravação. O Sr. Armando quase bateu nele. ‒ Ela engoliu em seco, como se ainda tivesse traumatizada pela lembrança.

‒ Não vou mexer em nada.

‒ Se precisar trabalhar enquanto o Sr. Armando se ausentar, quero que fique claro que precisará ter muito cuidado com o manuseio dos aparelhos e computadores. Se houver qualquer urgência, sempre salve os arquivos no Tablet ou no celular, antes de mexer em qualquer música. É uma garantia.

‒ Eu entendo.

Sheila abriu outra porta com três ambientes separados por paredes de vidro.

‒ Essa é a sala de captação I para tratamento acústico, essa é a II com luz natural e essa menor é a de Pedra Gruta, para gravação de guitarras.

Isso era novidade para mim. Pensei em como meu irmão ficaria interessado em gravar uma música nessa sala de Pedra Gruta.

‒ Se eu estiver ocupada, seria bom você manter o estúdio limpo e arrumado. Lavar as xícaras que ficarem na pia, retirar o lixo do banheiro, essas coisas. Talvez não tenha gravação todos os dias. Você terá várias tarefas diferentes.

Sheila olhou para minha calça jeans e minha blusa estampada como se visse pela primeira vez. Tentei sorrir, mas pareceu forçado demais.

‒ Obviamente espero que você goste do serviço e se entenda com o Sr. Armando. Seria ótimo se ele te aceitasse como uma ótima oportunidade de progresso em vez de uma profissional paga pelo serviço.

‒ E por onde eu começo?

‒ Daqui a pouco o Sr. Armando vai chegar. Por enquanto quero que você coloque etiquetas nas caixas que estão na recepção. O correio virá buscá-las daqui a duas horas.

Fui me alegrando. Se etiquetar caixas fazia parte de meu trabalho, claro que eu iria gostar de trabalhar ali. Imaginei que se encontrasse o Sr. Armando na recepção, poderia ser que a apresentação surtisse um efeito positivo e ele até aprovasse a minha presença ali. Talvez desse certo. Talvez ele até gostasse de mim.

‒ Tem alguma pergunta?

‒ Não.

‒ Então vamos ao trabalho. ‒ Ela olhou para o relógio. ‒ Você ainda tem alguns minutos.

Comecei a etiquetar as caixas, como Sheila me pediu, empilhando em ondem para que o correio pegasse a encomenda como deveria ser.  Mas na quinta caixa, a porta da recepção se abriu e um homem solidariamente forte, de camisa Polo e calça jeans entrou segurando uma pasta de couro preta na mão direita. Seus olhos fitaram os meus e, após uma pausa, ele olhou para Sheila esperando uma explicação para a minha presença ali.

‒ Bom dia, Sr. Armando.

Ele voltou a olhar para mim e não respondeu. Percebi que amassava a etiqueta a medida que a apertava.

‒ Já te disse que não gosto que me chame assim. Sou seu pai.

 Meu Deus, pensei. Por que um pai seria tão grosso com uma filha por lhe chamar pelo nome?

‒ Gosto de manter a formalidade, afinal sou sua funcionária e não sócia ‒ seu tom de voz era irônico.

‒ Talvez quando você souber usar seu dinheiro como uma adulta, poderemos conversar.

‒ Ou, talvez quando você aceitar que eu posso noivar com quem eu quiser...

‒ Você deveria escolher melhor. Não dar em cima de um cara que quase me afundou. Principalmente, quando ele destrói todos os arquivos musicais do estúdio. Nunca pensei que pudesse errar tanto quando fiz aquela sociedade.

‒ Claudio não é mais seu sócio e muito menos, meu noivo, apesar de que...

‒ Esse não é o momento para essa conversa, Sheila. Por favor, me poupe.

Ainda bem que não comentei as coisas sobre o que sei de Armando Siqueira para Sheila. Tipo, como ele é horrível e mau educado. Pelo menos essa é sua fama na cidade. Engoli em seco, com esforço. O homem continuava a me encarar. Ele esperava que eu dissesse algo.

‒ Eu sou Laura ‒ minha voz trêmula quase não saiu de minha garganta.

Então, para meu espanto, suas feições se desanuviavam. Armando Siqueira olhou para mim firmemente, com o mais leve sorriso que eu já havia visto.

‒ Bom dia, Laura Sales ‒ disse ele. ‒ Soube que é minha nova assistente de gravação.

Sheila tinha terminado de anotar alguns dados na agenda. Olhou para seu pai, com uma expressão dura, diferente da que estava minutos antes.

‒ Quer passar as coordenadas ou quer que eu faça? ‒ ela sorriu para mim. ‒ Acredito que não tenha muita coisa para ensinar a Laura, já que ela sabe muito bem trabalhar em um estúdio.

‒ Me acompanhe, Laura. Eu mesmo mostro o trabalho que quero que faça.

Com uma crescente sensação de pânico, segui o Sr. Armando até a sala técnica. Fiquei no meio da sala, mãos enfiadas nos bolsos, incerta sobre o que fazer. O Sr. Armando abriu a pasta preta e sacou um notebook de lá. Logo ligou a mesa de som, como se eu não tivesse ali.

‒ Quer que eu traga um café, suco, água? ‒ perguntei, enfim, antes dele aumentar o som.

‒ Claro que não. Não te contratei para servir café, chá ou qualquer outra porcaria.

‒ Desculpe, só queria ajudar.

‒ Quero te explicar uma coisa. Isso é minha parte, mas você precisará saber como gosto que faça os arquivos musicais, para o caso de emergência ou de alguma ausência minha. Conhece essa mesa?

Dei uma olhada rápida e logo vi que nada era igual a que meu pai tinha. Droga!

‒ Não conheço muito bem.

‒ Não tem problemas. Acho que em poucos dias você ficará craque com todos esses botões. Há um manual aqui na gaveta, se preferir poderá levar para casa e estudá-lo. Costumamos trabalhar juntos, mas o estúdio não pode parar por causa de minhas viagens. Preciso ter certeza que você saberá o que fazer quando eu não estiver aqui.

Dei uma boa olhada nos botões. Era como se eu fosse controlar o mundo e não soubesse o que fazer com os botões. Acho que nunca tinha visto nada parecido. E eu que achava que o estúdio do meu pai era moderno.

‒ Certo. Sabe fazer mixagem?

Olhei para o computador bem na minha frente. Essa era a parte de meu irmão no estúdio. Nunca tinha feito uma mixagem, mas não podia dizer isso.

‒ Já fiz algumas com meu pai.

‒ Luiz Sales.

Meu sangue gelou ao ouvir o nome dele em sua voz.

‒ Espero que ele se acostume com a ideia de eu ter você trabalhando em meu estúdio. Talvez o fogo tenha deixado seu pai menos ambicioso.

Ele virou-se para mim. Seu rosto estava liso como se tivesse acabado de fazer a barba e os olhos eram indecifráveis. Ele voltou-se para a mesa de som, ligando a música.

‒ Estude o conteúdo do manual que amanhã voltaremos a conversar.

Saí da sala, o coração batendo forte. Na segurança da sala de repouso saquei o celular e digitei uma mensagem de texto para minha irmã.

ARMANDO SIQUEIRA É HORRÍVEL! ELE VAI SE VINGAR DO PAI ATRAVÉS DE MIM!

A resposta veio ligeira.

 PARE DE SER TONTA. NÃO PENSE NISSO. PRECISAMOS DO DINHEIRO.

O PAI PRECISA DE VOCÊ. VAI VALER O SACRIFÍCIO. BJ

 

Desliguei o celular e voltei para a recepção, disposta a me enfiar no trabalho e esquecer para quem eu trabalhava. Continuei a etiquetar as caixas, sem que Sheila ou o Sr. Armando pudessem me olhar de novo como se eu fosse um extraterrestre.

 

Ð

 

‒ Não me diga que foi tão ruim assim.

Eu estava estirada no sofá, enquanto aguardava mamãe terminar o jantar. Fiquei assim, desde que cheguei do estúdio Z, o que não era comum para mim. Eu sempre a ajudava com o jantar, colocando a mesa, ou preparando o suco.

Mas eu não queria ficar com mamãe naquela noite, pois ela ficava me olhando preocupada, me dizendo coisas como “isso vai passar, querida” e “nada pode ser tão ruim que não possa piorar” como se ela pudesse adivinhar o que eu passei diante de Armando Siqueira. Eu me sentia impotente e não tinha feito nada para isso.

‒ Eu não vou reclamar, Camila.

Camila sentou-se no sofá e colocou minha perna apoiada nas suas. Arrancou meu sapato e massageou meus pés.

‒ Eu podia estar com chulé. Você podia pelo menos esperar eu tomar um banho antes de querer me agradar.

‒ Não estou sentindo nada. Mamãe está achando que você não vai aguentar.

Puxei meus pés de suas mãos e me sentei no sofá.

‒ Caramba, Camila. Aquele homem é pior do que eu imaginava. Ele é um horror!

‒ É o único na cidade agora. Claro que ele vai te tratar como uma pessoa qualquer. Você é a filha humilhada do seu maior concorrente falido.

‒ Obrigada por me animar, irmãzinha.

‒ Mas, você deveria ter esperado o pior. Ele te destratou?

‒ Um pouco. Ele é sarcástico e grosso. Tentei sugerir servir algo pra ele, mas ele me olhou como uma idiota.

‒ Talvez porque você disse algo idiota.

‒ Claro que não! Eu tomei todo o cuidado para não fazer ou dizer nada de errado.

‒ Vai ver esse é o teste com todo o funcionário que entra no estúdio. Se conseguir sobreviver, fica, senão, já era.

‒ Ele não me deixou mexer em nada. Só me deu o manual da mesa para eu estudar. Vou ter que me matar para aprender tudo aquilo. A mesa não tem nada em comum com a que papai tinha.

‒ Se o problema é esse, então a solução já está a caminho. Você é ótima para decorar funções.

‒ Pode até ser, mas eu não sei se vou aguentar aquele mau humor frenético, Camila. Não sei mesmo. Só quem está lá é que entende o que estou dizendo.

Camila não disse nada, ficou me olhando. Levantou-se e olhou para a cozinha, como se quisesse conferir se tinha alguém se aproximando.

‒ Estou pensando em trabalhar na loja de sapatos e estudar à noite ‒ ela disse, por fim.

Levei alguns segundos para processar o que ela me contava.

‒ Ai, caramba. Mas... ‒ falei.

‒ Vou verificar amanhã se tem vaga no segundo ano à noite no Colégio. Eu não vejo futuro nos sanduíches de mamãe. Ela quer caprichar demais e as pessoas não vão pagar o que realmente vale ‒ ela deu de ombros. ‒ Estou com quase dezesseis anos e não vejo motivo para não poder estudar à noite.

‒ E papai? Você acha que será fácil convencê-lo? Ele sempre foi contra ao curso noturno. Acha que é uma bagunça e ninguém aprende nada... Você já conhece a história toda.

‒ Precisamos nos recuperar. O colégio fica a duas quadras daqui e não vejo perigo algum em estudar a noite. Eu acho que esse emprego vai ajudar todos nós. Não paga muito, mas se nos unirmos, logo recuperaremos nosso estúdio e voltaremos a trabalhar juntos.

Notei que ela me observava. Eu não sabia o que dizer.

‒ Não sei...

‒ Não vejo outra alternativa. Trabalhar com mamãe está acabando comigo. Ela nunca me ouve e eu tenho medo de perder a cabeça e gritar a qualquer momento. Quero voltar a trabalhar com vocês. E não aguento mais a dor em minhas mãos de carregar a cesta com sanduíches. Você acredita que andamos quase 14 quilômetros, só na parte da manhã?

Olhamos as duas para as mãos dela, que já apresentavam pequenos calos, em apenas um dia de trabalho.

Na cozinha, mamãe bateu as panelas, cantando canções do Roberto Carlos. Ela costumava cantarolar durante as tarefas para alegrar o momento, mesmo que não precisasse.

Não consegui dizer nada. A explicação de Camila foi se ajustando em meus pensamentos, de forma vagarosa, mas implacável. Eu me sentia como se tivesse caído em uma piscina de cimento e não conseguisse sair antes de endurecer por completo.

‒ Vai ficar tudo bem, Laura. Quero ajudar também a nossa família e o único jeito que eu vejo é trabalhando como vendedora. Não é um emprego definitivo, mas eu garanto que vai ajudar muito. Pelo menos, eu espero que ajude.

Como eu não disse nada, ela acrescentou:

‒ Vai ser uma ajuda para toda a família.

Concordei com a cabeça.

‒ Laura, preciso do seu apoio para contar a todos sobre minha ideia.

Nunca vi minha irmã tão caridosa e prestativa. Fiquei até sem jeito. Dei um sorriso, quando disse:

‒ Como estamos em uma situação sem muitas opções... É uma questão de acostumar. Eu com Armando Siqueira e você com o ensino noturno.

 

Ð

 

Eu sabia que meu pai não aceitaria tão facilmente a ideia de Camila. Por um lado, eu fiquei triste em ver minha irmã tão derrotada. Nem parecia a mesma Camila que falou comigo minutos antes do jantar, disposta a ajudar a família e mudar seu horário no colégio, sacrificando suas noites de sono. Mas, por outro lado, quase desmaiei de alívio, por meu pai proibi-la de estudar à noite. Foi com muito custo que entraram em um consenso: Camila poderá trabalhar agora, no período de férias e continuará estudando pela manhã. Meu pai irá com ela à loja, tentar negociar com o dono essa proposta. Tomara que ele aceite. 

 Depois do tumultuoso jantar, praticamente corri para o meu quarto. Larguei minha bolsa na cadeira, e liguei para minha amiga.

‒ Oi, Thainá.

‒ Oi, Laura. Já peguei suas notas. Fomos aprovadas.

‒ Ainda bem. Sem problemas com a Faculdade posso me concentrar no trabalho.

‒ Aliás, como foi seu primeiro dia de trabalho? Você não desistiu do estúdio Z, né?

‒ Não. Pelo menos por enquanto. Só precisava falar um pouco com alguém de fora daqui.

‒ O clima está pesado, amiga?

‒ Thainá, você não faz ideia. Minha irmã inventou de querer trabalhar, e quer estudar à noite. Imagine a reação de meu pai?

‒ Humm. Isso não é legal!

‒ Além de Armando Siqueira que conseguiu acabar com meu dia. Ele simplesmente me odeia.

‒ Não se deixe abater, Laura. Faça o que ele mandar. O que de pior pode acontecer?

‒ Sei lá... Talvez não tenha nada pior do que aguentar seu mau humor.

‒ Ainda bem que temos uma festa maneira na sexta para distrair um pouco.

‒ Ai, tinha até me esquecido dessa festa.

‒ Não vá me dizer que você desistiu? Não quero ir sozinha. Além do mais, você precisa relaxar.

Ela estava certa. Percebi que a festa de encerramento de fim de semestre veio no melhor momento.

Houve um breve silêncio. A voz de Thainá ficou estranhamente conciliatória. Aquilo era mesmo necessário. Significava que minha amiga sabia exatamente do que eu precisava e que eu tinha o pior patrão que se pode imaginar.

‒ Não vejo um motivo para não se distrair ‒ disse ela. ‒ Vamos aproveitar. Pense que você não precisará trancar a matrícula da Faculdade, ou trabalhar na loja de calçados como sua irmã, certo?

‒ Talvez trabalhar na loja de calçado seja o melhor emprego nesse momento...

‒ Vou ter que desligar, Laura. Eu te ligo na quinta para combinarmos o horário que vamos à festa.





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